Wednesday 25 August 2010

O comeҫo de tudo...

O texto abaixo é um post que escrevi para participar do concurso de blogueiras organizado pelo blog de Lola Aronovich, "Escreva Lola Escreva". Tema: As origens do meu feminismo.

Meu feminismo possui duas origens distintas. A inconsciente e a consciente. Ambas extremamente importantes na formaҫão do meu caráter e personalidade, e ambas marcadas por formas distintas de experiência pessoal e ativismo.

O meu feminismo inconsciente data de minha adolescência, nos fim dos anos 80, início dos 90. Criada como filha caҫula, com um irmão mais velho (e portanto merecedor dos mimos de um primogênito macho), foi nessa época que as primeiras “fichas” comeҫaram a cair me mostrando que ser do sexo feminino tinha suas desvantagens. Afinal de contas, a minha mesada era um pouco menor, eu só pude tirar carteira de motorista depois de meu irmão, a funҫão de ajudar minha mãe com os afazeres domésticos cabia só a mim, (e não ao meu irmão, que podia deixar seu prato na pia sem lavar) e obviamente eu deveria me sentir envergonhada por odiar serviҫo de casa e não saber lavar ou cozinhar direito. Ironicamente, ao mesmo tempo que essas coisas me eram impostas, havia um encorajamento enorme por parte de meus pais (principalmente por parte de minha mãe) para que eu me tornasse alguém na vida. O meu direito de ir para universidade nunca foi questionado, ao contrário de muitas amigas cujos pais só as permitiram estudar em faculdades próximas. O meu desejo de estudar Engenharia Civil (uma profissão vista como extremamente masculina) nunca foi desafiado e sair de casa para morar em uma cidade a 500km de distância não representou para meus pais uma ameaça à minha "inocência e virgindade".

Hoje acredito que a forҫa motor por trás do meu feminismo inconsciente foi minha mãe. Jamais me esquecerei dos muitos momentos onde seu olhar triste e vago expunham seu descontentamento em viver uma vida enjaulada como esposa e mãe. Era seu encorajamento para me tornar alguém na vida que passava uma mensagem subliminar de que eu poderia conseguir tudo que queria, “apesar” de ser mulher. Eram seus momentos de dúvida, medo e recaída - onde me aconselhava a fazer Magistério ao invés de Engenharia - que inconscientemente me impulsionavam a dedicar-me e estudar mais. E era durante suas crises de meia idade que eu jurava para mim mesma que não queria uma vida igual a dela, como dona de casa, mãe, e dependente financeiramente (e emocionalmente) do meu pai. Queria sair e conquistar o que era meu, ser uma mulher independente e com personalidade própria, pronta para provar a todos que ser do sexo feminino não era obstáculo. Ser uma das 15 mulheres em uma turma de 70 futuros Engenheiros Civis foi motivo de orgulho para mim, fazer parte do “clube da Luluzinha da Engenharia Civil” foi algo especial (afinal de contas, 15 era melhor que 1 da Engenharia Mecânica ou 2 da Engenharia Elétrica). Fazer parte de uma seleta elite já era ativismo suficiente para mim...

Em 98 mudei-me para a Europa, e aí ocorre a transiҫão do meu feminismo inconsciente para o feminismo consciente, onde comecei a pensar no assunto de uma forma mais elaborada e constante. Mas essa transiҫão ocorreu não porque me convenci de que a Europa fosse superior ao Brasil em matéria de feminismo, mas exatamente pelo motivo oposto, isto é, por vivenciar dia-a-dia desafios bem semelhantes aos que encontrara no Brasil, e por me espantar constantemente com o fato de que o velho mundo podia ser mesmo bem velho quando se trata de mulheres. Durante minha pós graduaҫão em Engenharia na Áustria, percebi que a situação na Universidade era ainda pior que no Brasil, e em várias aulas eu era a única mulher do grupo. Ao mudar-me para a Alemanha para trabalhar em uma multinacional americana, umas das perguntas que me fizeram na primeira semana foi se gostaria de me aliar a Diversity Network, um grupo de mulheres executivas que se encontravam regularmente para discutir problemas de preconceito e glass ceiling (teto de vidro, metáfora em inglês usada para descrever a falta de acesso de mulheres a posições altas dentro de uma corporação). “Como assim?”, eu pensava. “As mulheres na Alemanha são emancipadas...Aqui elas tem cabelo curto, aqui elas podem sair sem depilar as pernas, ir à praia sem depilar a virilha. Ser mulher aqui não é um problema”. Obviamente, apesar de todas as conquistas feministas das últimas decadas, descobri que o primeiro mundo também tem suas mazelas. A maioria das mulheres na empresa estava no mesmo cargo há muito tempo, e quando acontecia uma rara promoção, muitos diziam que não era por causa de seus proprios méritos, mas sim por causa dos programas de Diversity (explicação que na mente dos machos alemães era mais politicamente correta do que o antigo “ela dormiu com o chefe”). Uma mulher que saia para uma licenҫa maternidade longa estava “usando e abusando o sistema”, e algumas colegas americanas, com quem eu eventualmente tinha a chance de conversar, nem licenҫa maternidade direito tinham em seu país. Tudo foi um grande choque para mim, e instantaneamente comecei a fazer parte do grupo para discutir e aprender mais sobre um assunto, que pela primeira vez na minha vida, não só me interessava, mas também me afetava diretamente.

O choque maior, na verdade, aconteceu quando fui transferida para a Inglaterra em 2005. Descobri que “cool Britannia” não era tão cool assim, e que a situaҫão das mulheres no ambiente de trabalho era longe de ser ideal. Constantemente haviam reportagens sobre casos de assédio sexual nos jornais, e a “City”, como Londres é chamada, com seus bancos e instituiҫões financeiras poderosas, quase não tinha executivas em altos postos. Mais chocante ainda era a insistência das corporaҫões em negar que existia discriminaҫão sexual no ambiente de trabalho, sem que ninguém pudesse explicar direito por que mulheres estavam sempre ganhando menos ou não ocupavam cargos de grande importância. Até mesmo dentro da “Diversity Network” de minha empresa, que eu liderei entre 2006-2008, existia uma facҫão que não conseguia entender “por que a gente reclamava tanto”...

Fora do ambiente de trabalho minhas impressões não eram melhores também. Observava uma sexualização enorme de jovens e adolescentes e notava que o sonho de muitas inglesas é se tornar uma “WAG” (versão inglesa do pejorativo Maria-Chuteira), ou uma “glamour model” (à la Pamela Anderson), ambas tendo seus corpos diariamente expostos nas páginas dos tablóides, confirmando-se assim a falsa impressão de que beleza, e não talento e esforço, é o que lhes garante um lugar ao sol. Se a beleza não é suficiente, a gravidez na adolescência e consequentemente o casamento são outras alternativas vistas como viáveis para se adquirir “independência” financeira. Mesmo entre as classes mais altas, não ter familia e filhos é algo que ainda é visto mais como um problema (obviamente ginecológico, porque é só mulher que pode ser infértil, não é?) e não como uma escolha pessoal. Até loteria de fertilização in vitro existe por aqui! Quero deixar bem claro que não tenho nada contra casamento ou família. Eu mesma sou casada há mais de 4 anos e sou muito feliz, mas o fiz por escolha pessoal e não por falta de perspectiva de vida.

Hoje, aos 36 anos de idade acredito estar bem mais ativa em meu feminismo. Ativa mas também consciente de que a batalha ainda não está totalmente vencida, e que se não nos cuidarmos, uma onda de “doll feminism”(esse termo sendo por mim inventado, sem saber se realmente existe) - onde mulheres acreditam que beleza e sexualização substitem talento e dedicação para se atingir objetivos - poderá influenciar negativamente muitas de nossas importantes conquistas. Não podemos deixar que isso aconteça, e por mais tortas, conturbadas e heterogêneas que sejam as origens de nosso feminismo, acredito elas terem raízes fortes o suficiente para nos garantirem um final feliz e glorioso nessa luta.