Saturday 18 December 2010

Neve inglesa é diferente...

Hoje tá caindo a maior neve aqui em Londres...Dia de ficar quietinha dentro de casa, em baixo do cobertor, tomando chá e assistindo a BBC News repetir as mesmas notícias a cada 15 minutos.
Uma delas (que sinceramente não aguento mais ouvir) é sobre a severidade do clima este ano e sobre como o país não estava preparado para a nevasca, blah blah blah. E a mais irritante de todas: como apesar do caos gerado TODO ANO, ainda não é vantajoso investir na infraestrutura de transporte porque aqui não é Escandinávia ou Alpes...

Sou brazuca, mas uma coisa eu digo: de neve e clima frio eu entendo um pouquinho...não muito, mas um pouquinho. Depois de congelar por 5 anos na Alemanha, 2 na Áustria, e de inúmeras viagens pra Escandinávia pra visitar os sogros (uma delas sobre o delicioso clima de -20 Celsius), deu pra ver como outros países da Europa sabem lidar com a neve bem melhor do que a Inglaterra. E sinceramente, não é somente pelo fato desses outros países serem “mais expostos” ao clima frio do que aqui. Londres está praticamente na mesma latitude que o norte da Alemanha, portanto, o clima e quantidade de neve entre os dois lugares são comparáveis. Mesmo assim, não me lembro de Hamburg ou Hannover parando em caos total por causa de alguns milímetros de neve. Comparar o clima aqui com o da Escandinávia ou Sibéria seria injusto, mas uma comparação climática com a Alemanha, Holanda, Bélgica ou norte da França é totalmente plausível a meu ver.

Por que então os ingleses não conseguem dar um jeito na situação? Por que todo ano é a mesma coisa? Por que o país pena tanto com coisas que para outros são tão simples? Well, talvez porque ao contrário do que todo mundo pensa, a Inglaterra é segundo mundo e não primeiro. Aqueles que estudaram na época da Guerra Fria (como eu), lembram-se que segundo mundo era o bloco comunista aliado à União Soviética. Mas não estou dizendo aqui que a Inglatera seja comunista...Muito pelo contrário...Eles são um país mega capitalista, uma versão americana em solo Europeu, mas que ainda não se conformam de terem perdido o status de British Empire e nação mais poderosa do mundo. Entretanto primeiro mundo eles também não são, pois o nível de desorganização e bagunça no país são gritantes. Como um amigo meu (inglês!!!) definiu muito bem uma vez: “na Inglaterra, a atitude é européia, mas as estatísticas são americanas”...E é esse paradoxo que eles não conseguem enxergar...

Além disso, a cultura do entitlement (que traduziria como: é o meu direito!!!) é algo muito forte aqui. Acredito que seja algo reminiscente da época onde eles dominavam o mundo. Não quero dizer com isso que o povo não seja empreendedor, afinal de contas muitas das invenções que revolucionaram o mundo vieram dessas terras “shakespearianas”. Longe de mim também sugerir que lutar pelos direitos não seja algo a ser aplaudido. Mas existe uma atitude forte aqui de achar que tudo é um direito natural da pessoa...Uma coisa meio spoiled (mimada) mesmo. Não reciclo o lixo, porque acho que não é obrigação minha...Jogo lixo no chão ou deixo-o no metrô/trem (sim, eles fazem isso) porque se não tem lata de lixo perto, não sou obrigada a carregar lixo dentro da bolsa (eu carrego, minha bolsa é um chiqueiro, mas no chão eu não jogo). Não limpo a calçada de neve porque é papel da prefeitura (na Alemanha, se não limpar, e alguem cair em frente à sua porta e se machucar, eles podem te processar)...E por aí vão-se os exemplos...
Existe uma desconexão imensa entre o que eles acham que o país deve oferecer, e o que o país realisticamente pode oferecer. E o isolacionismo deles em relação à Europa não ajuda nem um pouco. Porque se talvez se considerassem europeus (europeu pra eles é só quem mora na Europa continental), e descessem um pouco do salto (e não tivessem só “atitude de europeu”) aprenderiam com exemplos de outros países e veriam com os próprios olhos que existem soluções super inteligentes e simples para muitos problemas. Por exemplo, ao invés de reclamarem: “ah, as estradas não estão limpas de neve, mas é meu direito sair de carro, portanto sairei”, pensassem “ah, mas talvez se eu comprasse pneu de inverno eu ajudaria a não criar caos no trânsito”, a situação poderia ser um pouco diferente e melhor.

Fico pensando, quais foram os eventos que deixaram o país com essa mentalidade. Será que foram os 10 anos de governo Labour? Afinal foram nos governos de Tony Blair e Gordon Brown que houve um aumento enorme de benefícios estatais, que muitos acham ter criado a cultura do “o governo tem que tomar conta de mim”. Sinceramente não acho que seja isso (ou só isso). Até porque acredito que o Estado tem que tomar sim conta dos que necessitam. Quem atrapalhou tudo mesmo foi Margaret Thatcher e seu governo ultra neoliberal que reviveu tão fortemente um sentimento de patriotismo desvairado (vide guerra das Malvinas) e uma nostalgia de British Empire, ao mesmo tempo que destruiu a estrutura industrial do país e levou tantos trabalhadores da classe média e pobre à miséria. São os Tories (partido conservador da qual Thatcher era parte) que (ainda) acham que pobreza e falta de oportunidades são escolhas pessoais, gerando assim um conflito interno nas pessoas entre “eu quero vencer” vs. “ mas não tenho como fazer isso nesse país”. Oras, qual povo não desanimaria, perderia o rumo e ficaria lazy (preguiçoso) com tanto paradoxo? Pensei de imediato: peraí, os brasileiros não se deixariam abater...os brasileiros são lutadores e portanto não perderiam o rumo assim...Certo...Mas não nos esqueçamos que esse país aqui (ao contrário do Brasil) foi por muito tempo o centro de tudo, o centro do mundo. Então, diferentemente de nós brasileiros, a mentalidade de que “as coisas não caem do céu” é algo que eles ainda tem que se acostumar.

Apesar de todos os seus problemas eu adoro a Inglaterra. Acho o povo maravilhoso, com um senso de humor brilhante e um coração de ouro. Aqui ainda é um país onde as pessoas puxam papo com você, conversam na fila com desconhecidos (parece bobeira, mas em países mais setentrionais da Europa, isso não rola não) e sorriem pra você (mesmo não te conhecendo). O potencial humano é enorme...Só precisam de um reality check básico pra descobrirem que a Europa é bem mais perto do que eles pensam e que o alinhamento político com os EUA talvez não seja a melhor coisa para eles. Mas infelizmente duvido que 4 anos de Tories seja o caminho certo para que essa mudança de pensamento aconteça...

Saturday 6 November 2010

Carta ao MRSP

Caros membros do Movimento República de São Paulo (MRSP)

Dirijo-me a vocês aflitamente em meio a um turbilhão de dúvidas que me assolam desde que escutei seus "nobres" planos de iniciarem a luta pela separação do Estado de São Paulo (ou seria apenas da cidade?).

Como brasileira (oops, paulista) que mora no exterior e portanto bastante conhecedora de burocracias migratórias, gostaria de começar a definir meu status e de minha família desde já, nesse momento que caminhamos rumo a República Paulista.

Antes de mais nada, peço clareza quanto a definição do que constitui um paulista. Sou uma ávida leitora de livros de genética e fã número um de Mendel e Darwin, mas acredito que devo ter perdido a aula onde a biologia do gene "paulista" foi estudada. Que lástima...Porque estou numa dúvida cruel se sou paulista ou não. E o motivo é simples: minha mae é mineira e meu pai capixaba, entretanto eu nasci no interior de São Paulo. Usando o novo critério pós-eleitoral tão em voga no Brasil que só estado "nordestino" é que vota na Dilma Rousseff, confesso que estou desesperada caro MRSP. Seria eu nordestina? Teria o gene "p" me falhado completamente? Ou será que os 24 anos que morei nesse estado tão "maravilhoso" foram suficientes para uma mutaçãozinha genética me garantir um lugar definitivo na elite biológica paulista? Conto com a benevolência de vocês MRSP, para que me considerem paulista jus sanguinis. Se acharem que não seja apropriado, tenham mais piedade ainda e utilizem o critério do jus solis. Assim minha família poderá continuar morando em São Paulo, sem que sejam importunados pela chata burocracia de pedir visto de residência permanente.

As questões geopolíticas e econômicas com os países vizinhos (Brasil, República do Sul) também tem me tirado sono, querido MRSP. Como cidadãos da República Paulista, faríamos parte do Mercosul? Precisaríamos de visto para ir ao Brasil ou ir passar férias no Nordeste? A via Dutra ficaria pertencendo ao Rio ou a São Paulo? Precisaremos de pagar taxa de alfândega para comprar pinga em Paraty ou bordados e doces no sul de Minas? Outra dúvida. E a moeda do país? Seria necessário criar uma nova? Ou poderíamos nos apossar do Real e forçar o Brasil a procurar uma outra moeda pra eles? Afinal de contas, FHC foi o pai do Real né, então nada mais justo do que a gente ficar com ele (o Real, não o FHC), não é mesmo?


Ah...pensei outra coisa caro MRSP, e o hino de São Paulo? Seria algo meio Adoniram Barbosa ou vocês consideram samba coisa chinfrim de carioca? Se for assim sugiro uma adaptação da versão “antiguinha” do hino alemão que diga algo mais ou menos assim: "São Paulo, São Paulo Über Alles" (traduzindo-se: São Paulo, São Paulo acima de tudo). Afinal de contas, alemão é europeu e europeu é chique né MRSP? Devemos copiar tudo deles. Por que não copiar também a ideia alemã nazista (quero dizer, antiguinha) de ter uma lista de obras proibidas para evitar a contaminação do sangue puro da nova nação paulista? Minhas sugestões de autores a serem proibidos: Jorge Amado, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e outros escritores de "segunda classe" brasileiros que não entendem nada de literatura e são apenas subversivos. E não se restrinjam a leitura apenas não, MRSP...Manifestações culturais "contaminadas" de outros estados (oops, países...nossa, vou demorar a me acostumar) deveriam ser proibidas também, ou não? Como nação rica (que terá o direito de ficar com toooodo o seu PIB) seus cidadãos poderão comer todo dia no Fasano's e ir a Ópera no Teatro Municipal, então rapadura e axé music pra que, né? Nordeste mesmo, só pros nossos mauricinhos poderem vomitar caipirinha nas praias de Porto Seguro no Carnaval, concordam?

São Paulo uma nação...Nossa, quem diria hein MRSP que veríamos esse dia? Não vejo a hora de ver as embaixadas paulistas aflorando no exterior, a bandeira bandeirante (haha, olha o trocadilho aí) voando em seu mastro e a foto de Presidente Serra pendurada nas paredes dos consulados convenientemente com um balde embaixo (sabe como e né, a emoção às vezes revira o estômago). Mal posso conter meu excitamento ao imaginar as bonitas paradas pelo centro da Avenida Paulista, com gente bonita e inteligente lembrando o passado lindo de nosso Estado (ah, de novo? país, quero dizer país). Membros importantíssimos da base de governo do Presidente Serra, como a Igreja Católica, grupos Pró-Vida e o Partido Verde, todos no palanque assistindo a uma verdadeira demostração de ordem e poder. Sem falar nos convidados internacionais... Berlusconi, Sarkozy, George Bush Jr., Margaret Thatcher...Uau, me belisca que parece um pesadelo (oops, sonho, sonho, desculpe).

Como vocês podem ver MRSP, muitas são as minhas perguntas e dúvidas. Mas tenho certeza que vocês como movimento sério formado por pessoas cultíssimas e diplomadas nas melhores universidades paulistas (obviamente excluindo-se a USP e UNICAMP), já têm resposta para todas essas questões.

Sendo assim, aguardo-as ansiosamente.

Sunday 31 October 2010

Como se escreve o nome da nossa Pátria?

São 08:52 em Londres...Ou melhor, 07:52 já que essa blogueira que vos fala ainda não voltou os relógios nesse fim de horário de verão. A cidade preguiçosamente curte mais uma horinha de sono, mas eu já estou aqui, na frente do computador, acordadíssima e agitadíssima pensando no dia de hoje...Na Dilma...nas eleições...no Brasil.

Elegeremos (ou já elegemos, dependendo da hora em que você, caro(a) leitor(a), estiver lendo esse post) nossa primeira presidenta. E isso é glorioso! O caminho foi árduo, penoso e muitas vezes asqueroso..Mas o bom senso prevaleceu. Entretanto ainda sinto um gostinho amargo na boca. Uma tristezinha, uma sensação de que a vitória foi conseguida, mas o triunfo está beeeemmmm longe. E sei exatamente o motivo pelo qual estou me sentindo assim. Ele se chama Brazil.

Sim, Brazil com “z”...Esse e o paíz que me assusta e me desanima.  É o paíz que me chocou ao se expor tão descarada e vergonhosamente no segundo turno dessas eleições presidenciais. É o paíz que ainda carrega a herança maldita do colonialismo, dos 20 anos de ditadura apoiada pelos nossos amiguinhos americanos (que surprise surprise pronunciam nosso país com “z”)...É o paíz Casa Grande e Senzala.

O Brazil é fascista. O Brazil tem uma imprensa golpista, manipuladora e sem ética. E essa mesma imprensa quando é criticada acusa aqueles que a criticam de inimigos da liberdade de expressão.

O Brazil é classista e racista. Os brazileiros são na minha opinião os votantes burguesinhos e riquinhos que apoiaram um candidato que se usou de truques, mentiras e calúnias para ganhar as eleições. São aqueles cidadãos que acham que Bolsa Família é esmola (engraçado, no resto do mundo se chama “social welfare”), que reclamam que empregada agora custa caro e tem TV plasma, que acham que negro não pode ter cotas na Universidade porque não é justo. São aqueles que acham que dizer 100% branco é a mesma coisa que dizer 100% negro.

O Brazil é conservador. Lá nesse paíz, mulher que aborta é considerada assassina, mas jogador de futebol que mata namorada é macho que apenas ensinou uma lição a uma “Maria Chuteira” vadia. Lá nesse paíz, a Igreja se mete em assuntos do Estado e prega que usar camisinha não ajuda contra o combate à Aids. No Brazil, os jovens brazileiros tem dificuldade de se dissociar dos mesmos valores e preconceitos de seus pais e avós.

Eu não sou brazileira. Nunca serei. E se o outro candidato tivesse ganhado, eu teria jogado meu passaporte no lixo. Mas antes que me acusem de radical, já digo de cara. Não, não sou contra multipartidarismo ou oposição. Oposição é vital para o funcionamento de uma democracia saudável. Mas sou contra o lixo político e partidário que existe no Brazil cujas plataformas se estruturam apenas no anti-petismo e não em propostas sólidas e concretas que beneficiem os que mais necessitam.

Mas o Brasil ganhou hoje. E com ele a esperança de que dias mais açucarados adoçarão o gostinho amargo que ainda sinto na boca. Com a vitória de Dilma estou mais próxima de querer voltar para a terrinha. Sempre me senti um pouco culpada por sair do país. Afinal de contas, não é o nosso hino que prega que um “filho teu não foge à luta”? Mas agora entendo que não fugi...Eu me libertei. Me libertei do Brazil, adquiri novos conhecimentos, expandi meus horizontes...E agora quero voltar e usar tudo de bom que aprendi a serviço do meu país. Lutar para que o Brazil nunca prevalesça.

Viva o povo BraSileiro!

Thursday 23 September 2010

O morro dos cabelos esvoaçantes!!!

Andando hoje pelas ruas chuvosas e barulhentas de Londres, deparei-me com um fato que não havia até então pensado muito a respeito. O cabelo crespo está em extinção!!! Das centenas de pessoas que vi dentro do metrô, muitas delas de origem caribenha ou africana, talvez menos de 1% estivesse usando o cabelo au naturale. As mulheres em sua maioria tinham seus cabelos alisados em suas milhares de variações tais como perucas, apliques, entrelaces e escovas. Os homens, que geralmente não são muito associados a grande entusiasmo capilar, também já escolheram sua versão própria para disfarçar o crespo...Carecas ou com o cabelo bem raspadinho mostrando só uma plumagem quase imperceptível no couro cabeludo.

Cabelo sempre foi um dilema para mim. Como mulher negra, nasci e cresci envolvida por discussões sobre o assunto. Durante minha infância usava tranças bem longas, que minha mãe pacientemente penteava todos os dias. Na escola sofria com as infames perguntas do tipo: por que voce não usa o cabelo solto? por que voce não precisa de elastiquinho pra prender a trança na ponta? por que o seu cabelo não se movimenta como o meu? Esses comentários doiam e me deixavam com vergonha, e como tantas meninas da minha idade e cor, passei pelas fases de toalha na cabeça, perucas e lenços. Ainda assim, comparativamente, a minha situaçao não era tão "ruim", pois as tranças eram um meio termo aceitável ao padrão de beleza imposto por cabelos lisos, esvoaçantes e brilhosos.

Na adolescência, veio o sofrimento maior...Minha mãe cortou minhas tranças e o resultado foi um cabelo curtinho, que eu penosamente tentava "domar" com bobs, alisamentos e condicionadores mil. Passei obviamente a minha adolescência inteira me sentindo horrorosa, e meus cabelos certamente contribuíram muito para a minha auto-imagem deturpada e negativa. Lembro-me de estar arrumando as malas pra sair de casa pela primeira vez aos 17 anos, e pensando o que seria de mim em Campinas, pois no pensionato onde iria morar não poderia (ou queria) mostrar o quão penoso era o meu ritual diário para me tornar “apresentável”.

Uma vez em Campinas, já na Universidade, não sei bem se as coisas melhoraram ou pioraram, mas passei a ligar bem menos para o assunto. Minha carga horária era tão pesada, que sinceramente não tinha tempo para pensar muito em vaidade. Acho que no fim eu embarquei de corpo e alma no padrão "feia mais engenheira"...Talvez fosse um mecanismo de auto-defesa contra a elite patricinha e classista da Unicamp. Mas minha estratégia You got the hair, but I got the brains (Você tem os cabelos mas eu tenho o cérebro) me protegeu de aflições maiores. Estabeleci meu status de CDF e com isso fui deixada em paz. Com a paz veio a auto-confiança e a tentativa de deixar meu cabelo longo de novo...

Longo...Essa foi a palavra chave do meu momento capilar Eureka...Descobri que não precisava ter mais cabelos curtos, e que se "desse um jeito" poderia me encaixar no padrão satisfatoriamente...Com o fim da faculdade veio também um pouquinho mais de grana e a possibilidade de poder comprar produtos mais especializados e caros. Nessa época coincidentemente houve uma explosão de produtos afro no mercado brasileiro, com a Seda (da infame Unilever) pela primeira vez ousando lançar um shampoo para cabelos crespos (com o desenhinho de uma negra no rótulo). Uau, que progresso, eu pensei...Agora a indústria cosmética está olhando pra gente..Entrei no mundo dos permanentes afros, condicionadores leave-in e parti feliz da vida rumo à Europa, com as madeixas mais longas, cheias de permanente e auto-confiança.

Meu cabelo é menos um tema aqui na Europa do que no Brasil. Mas isso não significa que as pessoas de etnia negra aqui sejam menos suscetíveis ao massacre de imagens da mídia branca. E eu confesso que no começo fui uma das vítimas. Com uma infinidade de cabelereiros ethnic aqui em Londres, me senti como se estivesse em um Éden. Lojas especializadas com seus produtos maravilhosos, alisantes importados e salões chiquérrimos. Obviamente é otimo que mulheres negras tenham salões lindos a sua disposição e não tenham que se contentar apenas com a cabelereira do fundo de garagem. Mas a mensagem é uma só...Liso, liso, liso. Semana passada, diante de toda a polêmica criada pelo embranquecimento e escondimento de gordura de Gabourey Sidibe na capa da Elle, notei que ninguém sequer mencionou o fato de que seus cabelos estavam extremamente alisados. O racismo capilar está tão embutido e imperceptível em nossa sociedade que ninguém mais liga. Ninguém acha nada demais no fato de Beyonce e Cia. chegarem ao cúmulo de rasparem seus próprios cabelos naturais para usarem implantes longos e loiros. E o que me irrita é o fato de que isso seja vendido para as pessoas como uma escolha ou até mesmo como um direito pessoal, sem que as causas reais dessa distorção - o racismo das pessoas e da indústria de entretenimento - sejam jamais expostas.

Não vou me fingir de santa, caros leitores e leitoras. Por 3 vezes em minha vida eu já sai do salão com cabelo de "chinesa". Por mais excitante que tenha sido poder balançar minhas madeixas ao vento (caí até no cúmulo de mandar fotos pra minhas amigas), olhando-me no espelho mais tarde eu não conseguia me reconhecer muito. Sentia falta dos meus cachinhos, e da minha cara de sempre. Me sentia meio como um sell-out (vendida), sem identidade mesmo. Foi aí que em um momento totalmente à la "Morro dos Ventos Uivantes", gritei como minha heroina Catherine Earnshaw ao declarar seu amor por Heathcliff: I am my curls (Eu sou os meus cachos!!!). E me senti poderosa, sem medo de ser feliz.

Hoje estou naquela fase onde gostaria de fazer algo legal com meu cabelo pra dar uma variada no visual (já que estou sem um corte definido há mais de um ano), mas não sei muito quais são as minhas opções. Ou melhor, até eu sei...Os salões londrinos em sua falta de criatividade total oferecem quase sempre a mesma alternativa: cabelos lisos e longos cheio de apliques, perucas e chapinhas. Eu não quero isso...Quero algo que seja meu estilo, minha cara. E torço para que a minha procura não termine como a de Catherine...Ela nunca conseguiu achar o amor...Eu espero que meu cabelo jamais se torne o meu Heathcliff...

Tuesday 14 September 2010

4o Concurso de Blogueiras 2010 - Resultados da primeira etapa

Estou super feliz com o resultado da primeira etapa do concurso de blogueiras organizado pelo blog "Escreva Lola Escreva". Meu humilde (e primeiro) post teve o segundo maior número de votos, e estou literalmente me sentindo over the moon. Faz tempo que estava "flertando" com a idéia de ter um blog, mas nunca tinha a confiança suficiente de fazê-lo. Achava que escrever não era pra mim, e que ninguém teria interesse em ouvir qualquer coisa que tivesse a dizer. Mas o blog da Lola é tão maravilhoso e inspirador que decidi perder o medo e tentar... E agora estou super animada para continuar blogando e conhecendo amigos novos e interessantes através do meu blog. Muitíssimo obrigada pelos votos e pelos comentários carinhosos de vocês. Como Lola disse, o resultado final não é o mais importante, mas sim a possibilidade de divulgar blogs de mulheres pelo mundo afora. O que vale é o incentivo de continuar blogando...E esse podem ter certeza que tenho de sobra agora. Agora vamos lá no blog da Lola pra votar para as outras etapas...Os posts estão demais...Beijos, Fernanda



Friday 10 September 2010

Livro do Mês: "Immigrants, your country needs them" (Imigrantes, o seu país precisa deles)

Começo aqui uma “projeto” que tentarei executar com bastante disciplina. Todo mês revisarei um livro interessante que li e compartilharei com vocês minhas opiniões sobre ele. Antes de mais nada quero dizer que não tenho formação em Letras ou Literatura, e minha "autoridade" de criticar livros é totalmente não oficial. Como digo em meu perfil, este blog é simplesmente um "grito", onde discuto sobre coisas que considero legais e importantes. E livros certamente fazem parte da lista...

Essa semana comentarei sobre um livro maravilhoso que li recentemente, entitulado: Immigrants, your country needs them (tradução: Imigrantes, o seu país precisa deles), escrito por Philippe Legrain. Mencionei Legrain no me post anterior sobre patriotismo, mas hoje quero dedicar mais do que umas meras linhas a ele, um economista, jornalista e escritor freelance que passei a admirar muito nos últimos meses. Para quem quiser saber mais sobre ele e seus livros, indico o seu blog (mencionado aí embaixo na minha lista de favoritos). Vale a pena conferir (principalmente os vídeos e entrevistas).

A temática de imigração é importantíssima para mim, não somente pelo fato de eu ser uma imigrante faz quase 15 anos, mas principalmente porque o assunto é sempre permeado de controvérsia, racismo, politicagem e injustiça. E isso é extremamente irritante na minha opinião. Ontem mesmo estava no aeroporto de Heathrow esperando numa fila colossal para passar pela imigração (nem sendo cidadã permanente aqui e pagando 40% de imposto eles facilitam a vida da gente), quando observei uma placa do UK Border Agency (a Policia Federal daqui) bradando em altas letras: UK Border Agency - protecting Britain's border and controlling Immigration (tradução: Controle de fronteiras do Reino Unido – protegendo as fronteiras e controlando a imigração). Esta última parte da frase (controlling immigration) havia sido claramente adicionada depois, pois estava em letras diferentes...Talvez por causa das eleições que aconteceram aqui faz uns meses, eu pensei...Toda vez que a população se sente ameaçada no meio de uma crise econômica, os políticos a tranquilizam descendo o pau nos imigrantes. A fila onde esperava estava hiperlotada, cheia de cidadãos não europeus, a maioria africanos, cujos vôos chegaram por volta do mesmo horário. Obviamente, imigrante tem que ser tratado como lixo, então não importa que os bebês das mães africanas estivessem chorando de fome e os idosos morrendo de cansaço depois de horas e horas de vôo. Haviam 3 oficiais checando os passaportes de quase 500 pessoas, e depois de quase 2 horas na fila (juro!!!), eu sai fuzilando de raiva e pensando: pois é, na hora de invadir e colonizar o país deles tudo bem, mas na hora que eles vem no de vocês, aí precisa avacalhar...

Anyway, revoltas à parte, vamos ao livro. Legrain manda ver com uma frase que adoro: O argumento para imigração é econômico e não político!!!Pow, Soc, Tum, Pah!!! Toma na cara, seus xenófobos. Imigração faz sentido economicamente sim e ele prova isso. As maiores economias dos últimos tempo progrediram imensamente por causa de imigração. Veja os Estados Unidos por exemplo, com o Silicon Valley na Califórnia sendo um centro de inovação e geração de empregos. Os indianos, taiwaneses, etc são vitais para o sucesso do Valley, ja que estabelecem ligação com seus países de origem (com as vantagens de saberem a língua, os costumes e as práticas de negócios regionais) aumentando assim o comércio, criação de novas empresas e consequentemente a geração de empregos pros dois lados. Ate países mega xenófobos como Austrália não tem como negar os efeitos positivos da imigração em seu crescimento econômico. Imigração gera empregos e ponto final. Afinal de contas, cada imigrante que executa um trabalho que os nativos não querem fazer está possibilitando que esse mesmo nativo entre para o mercado de trabalho mais especializado, gerando assim riquezas para o seu país.

Democracias sociais como a Suécia e o Canadá estão aí para provar que imigrantes não oneram o sistema  social como muitos gostam de dizer. Afinal de contas, nem se os imigrantes estivessem a fim de abusar o sistema (o que piamente acredito que não estão), as leis de imigração não o permitem. Então essa coisa de que imigrante só quer viver de benefícios é pura balela, já que os legalizados não têm direito a um monte de coisas que os nativos têm (tipo seguro desemprego, ajuda de moradia, etc) nos primeiros anos de existência no país. E os ilegais então nem podem aparecer no radar para ir a um simples hospital, quanto mais pedir benefícios ao governo. Quanto aos asilados políticos, os argumentos também são carregados de preconceito, mas o que ninguém divulga é que o número de gente pedindo asilo é muito menor do que se acredita, e continua declinando em vários países. O que as pessoas confundem é que os imigrantes que elas juram ser “abusadores do sistemas”, são na verdade segunda, terceira geração nascidos no mesmo país que elas, portanto cidadãos tão legítimos quanto os que os criticam. Eles, por causa de sua cor de pele “diferente” se sobressaem, mas o que todo mundo esquece é que nativos brancos também pedem benefícios. Se as economias estão estagnadas, e as pessoas não tem como achar emprego às vezes, vão fazer o que? Passar fome? Não é pra isso que existe social welfare? Obviamente a problemática da falta integração dos descendentes de imigrantes na sociedade é complicada, já que muitos governos falharam miseravelmente em permitir que esses filhos e netos se sintam “em casa”. Um filho de turco que nasceu na Alemanha sempre será um turco aos olhos dos alemães, não importa se o cara nunca foi a Turquia ou só fala alemão. Mas isso aí e assunto pra um outro post...

Voltemos ao livro...Legrain é totalmente a favor da abertura de fronteiras, para os imigrantes capacitados (os chamados skilled) e os menos capacitados (non-skilled). E or argumento que usa é bem simples: como e que os governos sabem quais áreas da economia estão precisando de gente capacitada? A economia e algo dinâmica que muda constantemente e rapidamente. Se tem governo que não é capaz de saber nem quantos imigrantes existem no país (como é o caso do Reino Unido), como saberão quais setores da economia estão mais necessitados de mão de obra em um determinado momento? Além disso você nunca pode estimar 100% o poder empreendedor de uma pessoa quando ela está em um país que lhe proporcione condições de liberar o seu potencial. Se os governos ricos permitissem só a entrada de imigrantes skilled (com a exigência que se tenha no mínimo mestrado em alguns países), gente tipo Bill Gates ou Sir Stelios Iannou (dono da Easyjet, uma mega empresa de aviação britânica) não se qualificariam hoje para viver em seus próprios países, já que não estudaram em universidade e portando não seriam considerados como “skilled”. Bill Gates como non-skilled ? Parece piada, ou?

A ironia das políticas migratórias nojentas dos países ricos é que quanto mais eles dificultam, mais a galera quer ficar para sempre. Como Legrain diz, imigração não precisaria ser permanente, já que a maioria das pessoas que emigram não o fazem com a intenção de perder suas raízes, mas o fazem simplesmente por motivos econômicos. Se os mexicanos nos Estados Unidos, os paquistaneses na Inglaterra ou os turcos na Alemanha soubessem que poderiam voltar aos países ricos quando quisessem, eles com certeza não viriam de mala e cuia com suas famílias. Eles prefeririam continuar morando no México, Paquistão ou Turquia e vir trabalhar nos países ricos por um período limitado, ganhando sua graninha, e contribuindo para os dois lados.

Os países ricos têm que acordar...O futuro é chines, indiano, brasileiro, tailandês, vietnamita, filipino...É daí que sairá a maioria dos graduados do futuro. É dai que sairá a maioria da mão de obra que os países ricos tanto precisam. Nenhum país vai conseguir manter o ritmo de inovação e tecnologia necessários para competir em um mundo globalizado, somente com uma mão de obra uniforme, que não fala línguas e pensa do mesmo jeito.

E acho que essa discussão acontecerá mais rápido do que se pensa no Brasil também. À medida que crescemos e nos fortalecemos economicamente, cidadãos de outros países latino-americanos e africanos começarão a tentar sua vida em terras canarinhas. O Brasil pode passar rapidamente da condição de país de emigração a um país de imigração, e sinceramente espero que a gente esteja preparado com políticas eficientes para não cair nos mesmos erros e argumentos xenófobos dos países do primeiro mundo. Quem sabe o próximo livro de Legrain não será sobre a gente? :-)

Thursday 9 September 2010

Sou cidadã do mundo...Com muito orgulho e com muito amor!!!

Acabei de voltar de uma viagem curta mas maravilhosa a Nova Iorque. Esta foi a minha primeira visita à Big Apple, e como minha estada coincidiu com as comemorações do fim de semana brasileiro na cidade, não posso deixar de registrar minhas impressões e pensamentos em um post.


O número de brasileiros na cidade de NY e incrível. Moro em Londres e sempre achei que aqui era um “mini-Brasil” com cerca de 150 mil brasileiros espalhados pelos 32 boroughs da cidade (esses números são de 2007). Mas isso não chega nem aos pés da concentração brazuca que vi em NY. Estima-se que mais de 300.000 brasileiros vivem na região metropolitana da cidade, e como acredito que esses números incluam só os brasileiros legalizados, o número verdadeiro deve ser muito maior. Tem até uma rua chamada Little Brazil em Manhattan, e foi lá que se concentrou o Brazilian Day, um festival de celebração à cultura brasileira, incluindo shows de artistas famosos, muita comida, guaraná e dança.


Um dos momentos mais marcantes para mim foi ter visto quase 15.000 pessoas assistindo ao show de Ivete Sangalo no Madison Square Garden. Não sou fã dela, não gosto de axé music e fui realmente para acompanhar uma amiga que gosta da sua música e carinhosamente tinha reservado um ingresso para mim. Mas não tenho vergonha nenhuma de dizer que o show foi contagiante e que a energia no estádio era algo quase palpável. Mas durante o show, vendo tantos brasileiros matando saudades de sua cultura no exterior, um grande sentimento de culpa tomou conta de mim. Sim, porque me senti uma “antipatriota” por não sentir falta da minha cultura como muitos outros brasileiros sentem. Depois de quase 15 anos morando em diversos países não sinto falta de feijão, MPB ou até mesmo guaraná...Fico feliz quando encontro essas coisas, mas realmente nunca busquei cultura brasileira nos lugares onde morei. Sera que isso é errado, eu pensava durante o show? Por que todo mundo grita e canta “Eu sou brasileiro com muito orgulho e com muito amor” e eu não o faço? Será que sou uma traidora da pátria e não tenho orgulho do meu país?


Saí do Brasil pela primeira vez em 1996 e depois em 1998. Apesar de ser considerada como uma economic migrant aqui na Europa, minhas intenções migratórias eram bem mais simples no começo. Queria viajar, aprender línguas, conhecer países e pessoas e ter aventuras. Acabei estudando, trabalhando e casando...E acabei ficando...Obviamente depois de tanto tempo, realmente ficou mais complicado voltar. Mas depois de meditar bastante sobre o assunto, concluí que não, não sou uma traidora da pátria e amo muito o Brasil. Não pertenço a classe dos brazucas que só descem o pau no país e acham que tudo do exterior é melhor. Eu, por exemplo, acho que o brasileiro trabalha mais que o europeu (por salários infinitamente menores), é mais criativo, politizado e menos xenófobo (obviamente o verdadeiro teste será quando o número de imigrantes latino-americanos e africanos no país aumentar devido ao nosso desenvolvimento econômico...aí quero ver se a galera que ama estrangeiro europeu e americano vai gostar destes imigrantes “moreninhos” também...mas ate lá, concedo o benefício da dúvida).

O que eu não sou é patriota cega. Daquelas que acham que a só a nossa natureza é bonita, que não existem praias iguais as nossas (as ilhas Maldivas que o digam), música igual a nossa, que as nossas mulheres são as mais bonitas (engraçado, ninguém fala dos homens...ah é, esqueci...parece que é só mulher que é objeto) e que a nossa comida é a melhor do mundo. O que eu detesto é aquele patriotismo que romantiza e vangloria o jeitinho brasileiro como uma qualidade, ou o classismo que compara o Brasil a um paraíso porque lá pode-se ter empregada e motorista. Ou pior ainda, como escuto milhões de vezes por essas bandas de cá, um patriotismo que exalta o país como um lugar sem racismo...Não, desse Brasil não sinto falta e jamais sentirei...

Li um livro excelente do economista e escritor Philippe Legrain, onde ele debate a questão da imigração e da dificuldade dos países do primeiro mundo em verem seus benefícios. Um dos capítulos mais marcantes é o de quando Legrain toca na questão da diversidade e multiculturalismo e comenta que vivemos em um mundo globalizado, quase sem fronteiras, e com isso caem também as barreiras que definem o indivíduo como de “um lugar só”. Uma pessoa tem que ser definida por mais do que simplesmente o país onde ela nasceu. A religião, as línguas, as experiências pessoais, tudo faz parte do caldeirão que nos define. E é assim que me sinto. Depois de tanto tempo no exterior, a minha meta é manter o melhor da minha cultura original e absorver e assimilar o melhor de cada cultura que vivencio, seja através dos amigos que faço, ou dos países onde moro ou visito.

Acho que posso sim cantar a musiquinha do orgulho, só que a minha versão seria um pouquinho diferente: “eu, sou brasileira de coração, alemã na mente, austríaca no amor a natureza, inglesa no humor, americana no otimismo, africana na pele e norueguesa na consciência social...Com muito orgulho, e com muito amor”.

Wednesday 25 August 2010

O comeҫo de tudo...

O texto abaixo é um post que escrevi para participar do concurso de blogueiras organizado pelo blog de Lola Aronovich, "Escreva Lola Escreva". Tema: As origens do meu feminismo.

Meu feminismo possui duas origens distintas. A inconsciente e a consciente. Ambas extremamente importantes na formaҫão do meu caráter e personalidade, e ambas marcadas por formas distintas de experiência pessoal e ativismo.

O meu feminismo inconsciente data de minha adolescência, nos fim dos anos 80, início dos 90. Criada como filha caҫula, com um irmão mais velho (e portanto merecedor dos mimos de um primogênito macho), foi nessa época que as primeiras “fichas” comeҫaram a cair me mostrando que ser do sexo feminino tinha suas desvantagens. Afinal de contas, a minha mesada era um pouco menor, eu só pude tirar carteira de motorista depois de meu irmão, a funҫão de ajudar minha mãe com os afazeres domésticos cabia só a mim, (e não ao meu irmão, que podia deixar seu prato na pia sem lavar) e obviamente eu deveria me sentir envergonhada por odiar serviҫo de casa e não saber lavar ou cozinhar direito. Ironicamente, ao mesmo tempo que essas coisas me eram impostas, havia um encorajamento enorme por parte de meus pais (principalmente por parte de minha mãe) para que eu me tornasse alguém na vida. O meu direito de ir para universidade nunca foi questionado, ao contrário de muitas amigas cujos pais só as permitiram estudar em faculdades próximas. O meu desejo de estudar Engenharia Civil (uma profissão vista como extremamente masculina) nunca foi desafiado e sair de casa para morar em uma cidade a 500km de distância não representou para meus pais uma ameaça à minha "inocência e virgindade".

Hoje acredito que a forҫa motor por trás do meu feminismo inconsciente foi minha mãe. Jamais me esquecerei dos muitos momentos onde seu olhar triste e vago expunham seu descontentamento em viver uma vida enjaulada como esposa e mãe. Era seu encorajamento para me tornar alguém na vida que passava uma mensagem subliminar de que eu poderia conseguir tudo que queria, “apesar” de ser mulher. Eram seus momentos de dúvida, medo e recaída - onde me aconselhava a fazer Magistério ao invés de Engenharia - que inconscientemente me impulsionavam a dedicar-me e estudar mais. E era durante suas crises de meia idade que eu jurava para mim mesma que não queria uma vida igual a dela, como dona de casa, mãe, e dependente financeiramente (e emocionalmente) do meu pai. Queria sair e conquistar o que era meu, ser uma mulher independente e com personalidade própria, pronta para provar a todos que ser do sexo feminino não era obstáculo. Ser uma das 15 mulheres em uma turma de 70 futuros Engenheiros Civis foi motivo de orgulho para mim, fazer parte do “clube da Luluzinha da Engenharia Civil” foi algo especial (afinal de contas, 15 era melhor que 1 da Engenharia Mecânica ou 2 da Engenharia Elétrica). Fazer parte de uma seleta elite já era ativismo suficiente para mim...

Em 98 mudei-me para a Europa, e aí ocorre a transiҫão do meu feminismo inconsciente para o feminismo consciente, onde comecei a pensar no assunto de uma forma mais elaborada e constante. Mas essa transiҫão ocorreu não porque me convenci de que a Europa fosse superior ao Brasil em matéria de feminismo, mas exatamente pelo motivo oposto, isto é, por vivenciar dia-a-dia desafios bem semelhantes aos que encontrara no Brasil, e por me espantar constantemente com o fato de que o velho mundo podia ser mesmo bem velho quando se trata de mulheres. Durante minha pós graduaҫão em Engenharia na Áustria, percebi que a situação na Universidade era ainda pior que no Brasil, e em várias aulas eu era a única mulher do grupo. Ao mudar-me para a Alemanha para trabalhar em uma multinacional americana, umas das perguntas que me fizeram na primeira semana foi se gostaria de me aliar a Diversity Network, um grupo de mulheres executivas que se encontravam regularmente para discutir problemas de preconceito e glass ceiling (teto de vidro, metáfora em inglês usada para descrever a falta de acesso de mulheres a posições altas dentro de uma corporação). “Como assim?”, eu pensava. “As mulheres na Alemanha são emancipadas...Aqui elas tem cabelo curto, aqui elas podem sair sem depilar as pernas, ir à praia sem depilar a virilha. Ser mulher aqui não é um problema”. Obviamente, apesar de todas as conquistas feministas das últimas decadas, descobri que o primeiro mundo também tem suas mazelas. A maioria das mulheres na empresa estava no mesmo cargo há muito tempo, e quando acontecia uma rara promoção, muitos diziam que não era por causa de seus proprios méritos, mas sim por causa dos programas de Diversity (explicação que na mente dos machos alemães era mais politicamente correta do que o antigo “ela dormiu com o chefe”). Uma mulher que saia para uma licenҫa maternidade longa estava “usando e abusando o sistema”, e algumas colegas americanas, com quem eu eventualmente tinha a chance de conversar, nem licenҫa maternidade direito tinham em seu país. Tudo foi um grande choque para mim, e instantaneamente comecei a fazer parte do grupo para discutir e aprender mais sobre um assunto, que pela primeira vez na minha vida, não só me interessava, mas também me afetava diretamente.

O choque maior, na verdade, aconteceu quando fui transferida para a Inglaterra em 2005. Descobri que “cool Britannia” não era tão cool assim, e que a situaҫão das mulheres no ambiente de trabalho era longe de ser ideal. Constantemente haviam reportagens sobre casos de assédio sexual nos jornais, e a “City”, como Londres é chamada, com seus bancos e instituiҫões financeiras poderosas, quase não tinha executivas em altos postos. Mais chocante ainda era a insistência das corporaҫões em negar que existia discriminaҫão sexual no ambiente de trabalho, sem que ninguém pudesse explicar direito por que mulheres estavam sempre ganhando menos ou não ocupavam cargos de grande importância. Até mesmo dentro da “Diversity Network” de minha empresa, que eu liderei entre 2006-2008, existia uma facҫão que não conseguia entender “por que a gente reclamava tanto”...

Fora do ambiente de trabalho minhas impressões não eram melhores também. Observava uma sexualização enorme de jovens e adolescentes e notava que o sonho de muitas inglesas é se tornar uma “WAG” (versão inglesa do pejorativo Maria-Chuteira), ou uma “glamour model” (à la Pamela Anderson), ambas tendo seus corpos diariamente expostos nas páginas dos tablóides, confirmando-se assim a falsa impressão de que beleza, e não talento e esforço, é o que lhes garante um lugar ao sol. Se a beleza não é suficiente, a gravidez na adolescência e consequentemente o casamento são outras alternativas vistas como viáveis para se adquirir “independência” financeira. Mesmo entre as classes mais altas, não ter familia e filhos é algo que ainda é visto mais como um problema (obviamente ginecológico, porque é só mulher que pode ser infértil, não é?) e não como uma escolha pessoal. Até loteria de fertilização in vitro existe por aqui! Quero deixar bem claro que não tenho nada contra casamento ou família. Eu mesma sou casada há mais de 4 anos e sou muito feliz, mas o fiz por escolha pessoal e não por falta de perspectiva de vida.

Hoje, aos 36 anos de idade acredito estar bem mais ativa em meu feminismo. Ativa mas também consciente de que a batalha ainda não está totalmente vencida, e que se não nos cuidarmos, uma onda de “doll feminism”(esse termo sendo por mim inventado, sem saber se realmente existe) - onde mulheres acreditam que beleza e sexualização substitem talento e dedicação para se atingir objetivos - poderá influenciar negativamente muitas de nossas importantes conquistas. Não podemos deixar que isso aconteça, e por mais tortas, conturbadas e heterogêneas que sejam as origens de nosso feminismo, acredito elas terem raízes fortes o suficiente para nos garantirem um final feliz e glorioso nessa luta.