Thursday 23 September 2010

O morro dos cabelos esvoaçantes!!!

Andando hoje pelas ruas chuvosas e barulhentas de Londres, deparei-me com um fato que não havia até então pensado muito a respeito. O cabelo crespo está em extinção!!! Das centenas de pessoas que vi dentro do metrô, muitas delas de origem caribenha ou africana, talvez menos de 1% estivesse usando o cabelo au naturale. As mulheres em sua maioria tinham seus cabelos alisados em suas milhares de variações tais como perucas, apliques, entrelaces e escovas. Os homens, que geralmente não são muito associados a grande entusiasmo capilar, também já escolheram sua versão própria para disfarçar o crespo...Carecas ou com o cabelo bem raspadinho mostrando só uma plumagem quase imperceptível no couro cabeludo.

Cabelo sempre foi um dilema para mim. Como mulher negra, nasci e cresci envolvida por discussões sobre o assunto. Durante minha infância usava tranças bem longas, que minha mãe pacientemente penteava todos os dias. Na escola sofria com as infames perguntas do tipo: por que voce não usa o cabelo solto? por que voce não precisa de elastiquinho pra prender a trança na ponta? por que o seu cabelo não se movimenta como o meu? Esses comentários doiam e me deixavam com vergonha, e como tantas meninas da minha idade e cor, passei pelas fases de toalha na cabeça, perucas e lenços. Ainda assim, comparativamente, a minha situaçao não era tão "ruim", pois as tranças eram um meio termo aceitável ao padrão de beleza imposto por cabelos lisos, esvoaçantes e brilhosos.

Na adolescência, veio o sofrimento maior...Minha mãe cortou minhas tranças e o resultado foi um cabelo curtinho, que eu penosamente tentava "domar" com bobs, alisamentos e condicionadores mil. Passei obviamente a minha adolescência inteira me sentindo horrorosa, e meus cabelos certamente contribuíram muito para a minha auto-imagem deturpada e negativa. Lembro-me de estar arrumando as malas pra sair de casa pela primeira vez aos 17 anos, e pensando o que seria de mim em Campinas, pois no pensionato onde iria morar não poderia (ou queria) mostrar o quão penoso era o meu ritual diário para me tornar “apresentável”.

Uma vez em Campinas, já na Universidade, não sei bem se as coisas melhoraram ou pioraram, mas passei a ligar bem menos para o assunto. Minha carga horária era tão pesada, que sinceramente não tinha tempo para pensar muito em vaidade. Acho que no fim eu embarquei de corpo e alma no padrão "feia mais engenheira"...Talvez fosse um mecanismo de auto-defesa contra a elite patricinha e classista da Unicamp. Mas minha estratégia You got the hair, but I got the brains (Você tem os cabelos mas eu tenho o cérebro) me protegeu de aflições maiores. Estabeleci meu status de CDF e com isso fui deixada em paz. Com a paz veio a auto-confiança e a tentativa de deixar meu cabelo longo de novo...

Longo...Essa foi a palavra chave do meu momento capilar Eureka...Descobri que não precisava ter mais cabelos curtos, e que se "desse um jeito" poderia me encaixar no padrão satisfatoriamente...Com o fim da faculdade veio também um pouquinho mais de grana e a possibilidade de poder comprar produtos mais especializados e caros. Nessa época coincidentemente houve uma explosão de produtos afro no mercado brasileiro, com a Seda (da infame Unilever) pela primeira vez ousando lançar um shampoo para cabelos crespos (com o desenhinho de uma negra no rótulo). Uau, que progresso, eu pensei...Agora a indústria cosmética está olhando pra gente..Entrei no mundo dos permanentes afros, condicionadores leave-in e parti feliz da vida rumo à Europa, com as madeixas mais longas, cheias de permanente e auto-confiança.

Meu cabelo é menos um tema aqui na Europa do que no Brasil. Mas isso não significa que as pessoas de etnia negra aqui sejam menos suscetíveis ao massacre de imagens da mídia branca. E eu confesso que no começo fui uma das vítimas. Com uma infinidade de cabelereiros ethnic aqui em Londres, me senti como se estivesse em um Éden. Lojas especializadas com seus produtos maravilhosos, alisantes importados e salões chiquérrimos. Obviamente é otimo que mulheres negras tenham salões lindos a sua disposição e não tenham que se contentar apenas com a cabelereira do fundo de garagem. Mas a mensagem é uma só...Liso, liso, liso. Semana passada, diante de toda a polêmica criada pelo embranquecimento e escondimento de gordura de Gabourey Sidibe na capa da Elle, notei que ninguém sequer mencionou o fato de que seus cabelos estavam extremamente alisados. O racismo capilar está tão embutido e imperceptível em nossa sociedade que ninguém mais liga. Ninguém acha nada demais no fato de Beyonce e Cia. chegarem ao cúmulo de rasparem seus próprios cabelos naturais para usarem implantes longos e loiros. E o que me irrita é o fato de que isso seja vendido para as pessoas como uma escolha ou até mesmo como um direito pessoal, sem que as causas reais dessa distorção - o racismo das pessoas e da indústria de entretenimento - sejam jamais expostas.

Não vou me fingir de santa, caros leitores e leitoras. Por 3 vezes em minha vida eu já sai do salão com cabelo de "chinesa". Por mais excitante que tenha sido poder balançar minhas madeixas ao vento (caí até no cúmulo de mandar fotos pra minhas amigas), olhando-me no espelho mais tarde eu não conseguia me reconhecer muito. Sentia falta dos meus cachinhos, e da minha cara de sempre. Me sentia meio como um sell-out (vendida), sem identidade mesmo. Foi aí que em um momento totalmente à la "Morro dos Ventos Uivantes", gritei como minha heroina Catherine Earnshaw ao declarar seu amor por Heathcliff: I am my curls (Eu sou os meus cachos!!!). E me senti poderosa, sem medo de ser feliz.

Hoje estou naquela fase onde gostaria de fazer algo legal com meu cabelo pra dar uma variada no visual (já que estou sem um corte definido há mais de um ano), mas não sei muito quais são as minhas opções. Ou melhor, até eu sei...Os salões londrinos em sua falta de criatividade total oferecem quase sempre a mesma alternativa: cabelos lisos e longos cheio de apliques, perucas e chapinhas. Eu não quero isso...Quero algo que seja meu estilo, minha cara. E torço para que a minha procura não termine como a de Catherine...Ela nunca conseguiu achar o amor...Eu espero que meu cabelo jamais se torne o meu Heathcliff...

2 comments:

  1. você é engenheira? não pode ser! escreve bem demais, hihi :)fora de brincadeira, gosto muito dos seus textos.
    também estudei na unicamp, mas era do ifch.

    abraço, barbara

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  2. Que lindo esse texto! Vou mandar para todas as minhas amigas^^
    E conta para Bárbara aí em cima que todo mundo pode escrever, incluindo galera das exatas =D

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